Hoje é que é o dia do presente
mas de todos os dias passados
poucos me estão presentes
porque há dias sem memória
Era desses que eu me queria lembrar
desses que não obedecem a datas
que são livres e foram felizes
Porque se misturaram na vida
numa amálgama de pequenas coisas
como o fumo das casas se dilui nas nuvens
Imagino-os de madorna, vagos como a paz
se calhar foi num desses dias que tudo começou,
exactamente aí...
Quando a lua sobe e deixa o dia escoar no calendário
Folheio uma agenda desactualizada e sem interesse
quando penso que todos os dias nascem
novos dias
Marc Chagall, Enchantement vesperal
Rego as flores do meu quintal
Como se a água fosse ar
nela misturo sangue venal
solto o pulmão nesse respirar
Desperto numa fusão de cheiros
num gesto de quem ama
as planto por esses canteiros
onde tudo o mais derrama
Dispostas ao acaso as flores
num intenso colorido de quadro
despontam de todas as cores
como sagradas em qualquer adro
Se falho na têmpera de jardineiro
com flores planto o irreal
liberto-as nesse cativeiro
que ainda é o menos artificial
Todas as flores têm direito
ao seu talhão de terra
fiz-lhes este poema a jeito
onde mão nenhuma as desenterra
As flores...
roubei-as em qualquer postal
só não sei que é feito
desse meu quintal...
Ser poeta por uma hora é
Ganhar tempo a olhar para a Terra a girar sobre si
ser ingénuo como uma criança que ri do mundo vão
dar um sorriso a quem não o tem
Apurar o ouvido para o silêncio da nuvem que desliza
admirar o compasso de um carreiro de formigas
descobrir o esconderijo do eco
Achar que tudo é importante até a dureza das pedras
olhar, pasmado, a imensidade de coisas de nada
e escrever uns versos que começam assim:
Ser poeta é tirar o véu à realidade
e descobrir a poesia que nela há
Ser poeta por uma hora é ver o mundo
de fora para dentro...
Por agora enriqueço-me em palavras, para depois as dividir com aqueles que as gostam de ler... O tempo, sempre o factor tempo a aniquilar o desejo. Vou estando por aqui, proqui logo se verá.... palavrarasa, esguia salgada...
Queria o verão manso e praiado
de céu aberto e estrela cadente
queria o Outono de folha pisado
que empurra o mais indolente
Queria o Inverno frio e tiritado
de nuvem veloz e céu plangente
queria a Primavera de ar folgado
pedra redonda e vida nascente
Mas o Verão também desfaz amores
e o Outono tem verão de castanha acesa
o Inverno também se abre às flores
Quando a Primavera chora a tristeza...
Se pintasse todas as suas cores
a tela movia-se de tanta Natureza
Tenho algumas certezas que são falíveis, mas aquela que me angustia mais é saber que me sinto vivo hoje, percorrendo a velocidade da minha morte galopante que se aproxima do amanhã... O constrangimento desse percurso é medonho por não saber se cheguei a ser gente...
Entre o querer e o ser dúvidas se afogam
Pela onda que atropela as próprias lágrimas;
Irrita o sol secante dos que logram
Fingir nessa verdade as suas lástimas.
Entre o querer e o ser as diferenças moram
E a assunção nos aproxima das máquinas,
ainda longe porquanto saciáveis
Lentos nesse mundo de apaixonáveis.
Pressentimentos dispersos, que afogam a mentira nas nossas angustiantes verdades escondidas; aguardando ardentemente que alguém as saiba descobrir no nosso simples olhar.